Olhemos para a nossa realidade sem filtros — nem do discurso oficial, nem da resignação habitual. Conhecemos, de facto, a dimensão da sinistralidade rodoviária em Moçambique? Ou preferimos ignorá-la até que a tragédia nos toque pessoalmente, transformando um ente querido numa estatística fria?
Há mais de 20 anos assistimos, com uma passividade inexplicável, ao agravamento de um verdadeiro terror nas nossas estradas. Uso a palavra “terror” de forma deliberada: em Moçambique, a sinistralidade rodoviária mata mais do que o terrorismo que assola Cabo Delgado. Mata mais, em vidas acumuladas e em potencial humano perdido, do que muitos anos da nossa dolorosa guerra civil. Com uma diferença crucial e perversa: a guerra destruiu pontes e ferrovias; a sinistralidade destrói famílias, aniquila a força de trabalho e compromete o futuro — deixando as estradas intactas, prontas para o próximo massacre.
O Presidente Daniel Chapo tem razão ao classificar o fenómeno como uma emergência nacional. Não é um mero problema de trânsito; é uma questão de segurança interna, de saúde pública e de sobrevivência.
No seguimento do terrível acidente na Manhiça — mais um capítulo sangrento da EN1 que vitimou sete cidadãos — vimos as autoridades reagirem rapidamente: suspensão da licença da operadora envolvida (City Link) e sanções aos condutores. É uma medida correta? Sim. Devemos aplaudir? Sem dúvida. Mas sejamos honestos: essa medida devolve as vidas perdidas?
Não.
E mais: ela garante que amanhã, ou na próxima semana, não acontecerá outro acidente igual ou pior, na mesma estrada, com outra empresa?
Também não.
A minha insatisfação — partilhada por muitos moçambicanos — reside no carácter superficial e reativo dessas decisões. Punir depois do sangue derramado é necessário, mas também revela o fracasso da prevenção. É o Estado a chegar tarde demais.
O problema é sistémico. Para cada motorista penalizado hoje, existem muitos outros prontos a substituí-lo: desempregados, pressionados pela sobrevivência e, muitas vezes, sem disciplina ou perceção real de risco. Estão na fila, preparados para continuar a “missão suicida” diária, encorajados pela certeza de que a fiscalização é frágil e permeável. Com o valor certo, a regra dobra-se.
Por isso, a sinistralidade não se resolve apenas com a gestão de culpas. Resolve-se com a gestão de susceptibilidades — identificar riscos antes que se transformem em fatalidades.
O que isso significa na prática?
1. Avaliação psicológica séria dos condutores
Não podemos entregar maquinaria pesada a indivíduos sem estabilidade emocional ou sem perceção real de risco. Precisamos de testes psicotécnicos rigorosos, não formulários burocráticos compráveis. É essencial identificar quem é propenso ao risco e impedir que conduza antes que ligue o motor.
2. Prevenção através da tecnologia — a dissuasão real
A fiscalização humana falhou porque o humano é corruptível. Precisamos de radares automáticos, câmaras, sistemas de controlo de velocidade média — instrumentos que não aceitam “refresco”. Quando o condutor sabe que está sempre a ser controlado, altera o comportamento.
3. Engenharia a favor da vida
As nossas estradas, muitas vezes mal desenhadas e sem condições de segurança, não perdoam erros. É preciso infraestrutura que minimize danos mesmo quando o condutor falha.
As medidas tomadas pelo Ministério são um sinal de autoridade. Mas são pensos rápidos numa ferida profunda. A emergência exige cirurgia séria: tecnologia, formação rigorosa, eliminação de pontos negros e combate implacável à corrupção que permite que veículos em mau estado circulem livremente.
Enquanto tratarmos a morte na estrada como destino, azar ou acidente, continuaremos a contar corpos. A estrada não mata por acaso; mata por negligência, omissão e tolerância ao inaceitável.
É hora de sermos sérios — pela memória dos que partiram e pela segurança dos que, hoje mesmo, se fazem à estrada.

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