Oito anos de guerra, silêncio e desgaste humano
O conflito armado em Cabo Delgado continua a deixar marcas profundas numa população que vive entre deslocamentos, medo permanente e perda de referências sociais e espirituais. Para o Padre Fonseca, que acompanha famílias deslocadas, as feridas mais graves nem sempre são visíveis.
Explica que, ao longo dos anos, a prolongada ausência de paz tem corroído valores fundamentais: “As pessoas vão perdendo o senso moral, o senso crítico, o senso de humanidade. Cabo Delgado pode tornar-se um local onde o ser humano é relativizado.”
Corrupção na ajuda e exploração da miséria
Questionado sobre denúncias recorrentes de corrupção na gestão da ajuda humanitária, o sacerdote confirmou a existência de práticas que considera “moralmente inaceitáveis”. Segundo ele, há relatos de pessoas obrigadas a pagar para receber alimentos que lhes são destinados.
“Não se pode aproveitar a vulnerabilidade das pessoas. A corrupção, mesmo em pequenas proporções, é corrupção”, disse, defendendo que a crise humanitária não deve servir de oportunidade para enriquecimento ou manipulação.
Medo como política: líderes silenciados e populações reprimidas
O Padre Fonseca também criticou o clima de intimidação que afecta líderes religiosos, activistas e cidadãos que denunciam irregularidades. Afirma que o medo tem sido usado como ferramenta para limitar discursos e impedir críticas.
“Enquanto tivermos medo de denunciar o mal, estaremos a concordar com quem o pratica”, alertou.
Campos de deslocados: feridas prolongadas e vida suspensa
Sobre os campos de deslocados, onde famílias vivem há anos, o religioso reforça que esses espaços são soluções temporárias que já ultrapassaram todos os limites razoáveis.
“Não há condições dignas para manter pessoas por tanto tempo em campos. O melhor lugar é sempre a própria casa. A paz é o único caminho para permitir o regresso e a cura.”
Aponta ainda que a exclusão social tende a prolongar-se enquanto estas comunidades permanecerem afastadas das suas terras.
Religião como pretexto: economia e poder por detrás da guerra
O sacerdote rejeita a narrativa de que o conflito é essencialmente religioso. Para ele, a dimensão económica e política tornou-se dominante, e a religião foi instrumentalizada como “capa” para justificar ações violentas.
“Cristãos, muçulmanos e praticantes de religiões tradicionais são igualmente afectados. Não se trata de uma guerra religiosa. É uma guerra que destrói vidas e desestabiliza o Estado.”
Por uma paz que devolva dignidade
Quando questionado sobre o que seria uma paz verdadeira, o Padre Fonseca defende uma paz que restaure a dignidade e não apenas silencie armas.“Moçambique precisa de paz com justiça. Paz que permita viver sem medo, trabalhar, rezar e conviver. Paz construída na verdade, na denúncia do mal e na defesa da vida.”
A sua mensagem final é um apelo moral e urgente: “O maior pecado hoje já não é a guerra, é a indiferença.”
Cabo Delgado: O silêncio que alimenta a guerra
Durante mais de oito anos, o conflito em Cabo Delgado expôs feridas profundas numa província onde a fome, o medo e a corrupção se entrelaçam com a violência armada. Entre deslocamentos forçados e vidas suspensas, emergem relatos que revelam um segundo campo de batalha — invisível, mas devastador.
Numa visita aos campos de reassentamento, o Integrity Magazine encontrou o Padre Fonseca, uma das vozes mais consistentes na denúncia das injustiças vividas pelas populações. Ele descreve uma guerra que não se limita às armas.
A crise invisível: a erosão do ser humano
O sacerdote lembra que a guerra alterou comportamentos e valores. “O tempo passa, a paz não chega e as pessoas vão perdendo referências. O senso moral esvai-se.”
Especialistas confirmam: quanto mais prolongado o conflito, maiores os riscos de colapso social.
A ajuda que não chega: denúncias de corrupção
Fontes humanitárias e líderes comunitários relatam que a ajuda alimentar é frequentemente desviada. Há casos de deslocados obrigados a pagar para receber alimentos. O Padre Fonseca não hesita: “Isso é corrupção. E está a ser praticada no momento mais frágil da vida dessas pessoas.”
Documentos internos de ONG consultados pelo Integrity Magazine apontam para falhas de supervisão, ausência de auditorias e pressão política que dificulta denúncias formais.
O medo como programa de governo não declarado
Activistas, docentes, religiosos e funcionários públicos descrevem um ambiente de autocensura. O receio de represálias molda discursos e limita críticas.
“O medo virou política, e o silêncio virou regra”, diz o sacerdote.
Relatórios independentes também registam casos de intimidação e perseguição a quem denuncia irregularidades, alimentando um ciclo de impunidade.
Campos de deslocados eternizados
Os campos foram concebidos como soluções temporárias, mas transformaram-se em moradias involuntárias.
O resultado: famílias sem terra, jovens sem escola, adultos sem trabalho e comunidades inteiras sem futuro.
“A cura só começa quando voltarem para as suas casas”, afirma o padre.
O que move a guerra: dinheiro, poder e influência
A narrativa religiosa perde força à medida que surgem evidências de que grupos armados actuam com objectivos económicos: controlo de recursos, rotas de comércio ilícito e influência territorial.
“O discurso religioso é apenas publicidade”, diz Fonseca. “A guerra não escolhe religião. Destrói tudo.”
O apelo final: quebrar o silêncio
No encerramento da entrevista, o sacerdote deixa uma reflexão que ecoa para além das fronteiras de Cabo Delgado:
“Enquanto o silêncio for regra, a injustiça será lei.


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