Apesar de estar amplamente documentado que parte das receitas provenientes do gás natural da Bacia do Rovuma foi directamente canalizada para o Orçamento do Estado (OE) e não para a Conta Transitória do Fundo Soberano, o Governo de Moçambique continua a sustentar, nos seus relatórios de execução orçamental, que os valores arrecadados se encontram depositados naquela conta especial no Banco de Moçambique, como exige a Lei nº 1/2024, de 9 de Janeiro, que criou o Fundo Soberano de Moçambique (FSM).
O que o Governo diz
No Balanço do Plano Económico e Social e Orçamento do Estado (PESOE) 2025, referente ao III Trimestre, aprovado e publicado recentemente, o Executivo reafirma que todas as receitas resultantes da exploração do gás natural — em especial do Projecto Coral Sul FLNG, operado pela ENI — estão depositadas na Conta Transitória de Petróleo e Gás.
Segundo o documento, entre 2022 e Setembro de 2025, o país arrecadou um total de 232,33 milhões de USD (equivalente a 14,846 mil milhões de Meticais) provenientes desse projecto.
Desse total:
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164,69 milhões de USD foram cobrados entre 2022 e 2024;
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67,64 milhões de USD entre Janeiro e Setembro de 2025.
 
O Governo insiste que tais valores estão “depositados na conta de Receita Transitória de Petróleo e Gás, sediada no Banco de Moçambique”, conforme o artigo 6 da lei do Fundo Soberano, de onde depois são distribuídos 60% para o Orçamento do Estado e 40% para o Fundo Soberano.
O que dizem os factos e o Tribunal Administrativo
No entanto, auditorias do Tribunal Administrativo (TA) e declarações oficiais de membros do próprio Governo mostram uma realidade diferente.
O Relatório e Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2023 revelou que parte das receitas arrecadadas não foi canalizada para a Conta Transitória, como determina a lei.
Exemplos:
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2022: dos 800 mil USD cobrados, nenhum valor foi depositado na Conta Transitória;
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2023: dos 73,36 milhões de USD anunciados, apenas 47,58 milhões foram depositados — um défice de 25,78 milhões;
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1º Trimestre de 2024: de 20,08 milhões, só 13,01 milhões foram depositados — faltando 7,07 milhões de USD.
 
No total, há um “sumiço” de cerca de 33,65 milhões de USD, que deveriam ter sido transferidos para a conta especial do Fundo Soberano.
A justificação do Governo
Questionada sobre o paradeiro desses valores, a Primeira-Ministra, Benvinda Levi, negou qualquer desvio, argumentando que os fundos foram arrecadados antes da criação formal do Fundo Soberano e, portanto, usados para cobrir despesas públicas através da Conta Única do Tesouro (CUT).
“Não há desvio de qualquer valor. Na verdade, aquele valor foi cobrado entre 2022 e 2023, antes da existência do Fundo Soberano. Tendo sido cobrado pela Autoridade Tributária, entrou na Conta Única do Tesouro e foi usado como uma despesa normal feita pelo Orçamento do Estado”, declarou Levi.
Essa posição é corroborada por Amílcar Tivane, Secretário de Estado do Tesouro e Orçamento, que também rejeita a ideia de irregularidade, sustentando que a movimentação seguiu os procedimentos orçamentais normais.
As discrepâncias numéricas continuam
Mesmo com a justificação governamental, o Tribunal Administrativo continua a apontar inconsistências e falta de transparência nas contas.
O órgão fiscalizador detectou diferenças entre os valores reportados por três entidades distintas:
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Instituto Nacional de Petróleos (INP) – responsável pela monitoria das receitas petrolíferas;
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Governo (Ministério da Economia e Finanças) – responsável pela declaração das receitas arrecadadas;
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Banco de Moçambique – que gere a Conta Transitória.
 
Em 2024, por exemplo:
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O INP reportou 91,3 milhões de USD arrecadados;
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O Governo declarou apenas 85,52 milhões de USD — uma diferença de 5,78 milhões;
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Apenas 78,4 milhões de USD foram efetivamente depositados na Conta Transitória — menos 7,12 milhões do que o valor declarado pelo Executivo.
 
Assim, a diferença total entre o reportado pelo INP e o efetivamente depositado chega a 12,9 milhões de USD.
O TA conclui que a discrepância se deve, em parte, aos 7,07 milhões de USD relativos ao Imposto sobre Produção, cobrados entre Janeiro e Março de 2024, mas que não foram transferidos para a Conta Transitória, permanecendo na Conta Única do Tesouro.
Receitas da ENI e a falta de documentos
A auditoria do TA também identificou falhas graves na documentação de receitas pagas pela Mozambique Rovuma Venture (MRV) — consórcio liderado pela ENI — entre 2022 e 2024.
Segundo o relatório:
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A empresa declarou ter pago 33,6 milhões de USD ao Estado moçambicano;
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Contudo, o Governo apenas confirmou a entrada de 24,6 milhões de USD no Orçamento;
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Restam 9,04 milhões de USD (equivalentes a 572,05 milhões de Meticais) sem comprovação documental.
 
O Tribunal lamenta que não existam Guias de Recolhimento (documentos fiscais) que comprovem o destino final desse dinheiro, o que impede a certificação completa das receitas e levanta dúvidas sobre a integridade do processo de arrecadação e contabilização.
Conclusão: Transparência em xeque
O caso das receitas do gás natural do Rovuma volta a expor fragilidades na governação financeira de Moçambique, sobretudo na gestão dos recursos naturais, um sector crucial para o futuro económico do país.
Apesar da criação do Fundo Soberano de Moçambique, concebido para assegurar uma gestão prudente e sustentável das receitas do gás, as auditorias indicam inconsistência de dados, falta de documentação e ausência de canalização adequada dos fundos.
Enquanto o Governo insiste que “não há desvio”, o Tribunal Administrativo e as contradições nos números demonstram que a transparência e a rastreabilidade das receitas continuam a ser um dos maiores desafios na gestão dos recursos provenientes da Bacia do Rovuma.

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